Abelhas Assassinas
Uma torneira que não fecha. Uma torneira que uso para encher uns baldes com a água que corre sem pressas, aparentemente limpa. Uma velha mulher ronda-a lavando a loiça do dia anterior com a mesma tranquilidade.
Suman diz qualquer coisa em nepalês a uma rapariga que se aproxima do pátio que serve de fonte local. Ambos sorriem. A rapariga olha para mim sem disfarçar a curiosidade, mas desvia o olhar assim que eu confesso notar a sua inspecção.
Traz, apoiada na cintura, uma bilha metálica que reflecte com intensidade o sol quente da manhã e o laranja do seu vestido.
Recuo um pouco deixando livre a torneira. A rapariga tira as sandálias e começa a lavar os pés no fio de água, concentrada naqueles gestos simples, sem reparar mais em nós apesar de estar a menos de um braço de distância. Admiro a sua beleza mas não consigo atribuir-lhe uma idade com exactidão. Brinco com Suman perguntando-lhe em inglês se ela é a sua namorada. Ele nega, dizendo que é antes uma das suas muitas mulheres. Entretanto a rapariga continua a usar o fio de água para refrescar a sua pele castanha e macia: as mãos, os braços, os ombros, o pescoço. Todos os gestos contêm uma enorme sensualidade nada artificial e por isso tão perturbadora.
Suman está agora verdadeiramente hipnotizado e tropeça num dos baldes vazios que estão aos nossos pés. Mas nem este ruído súbito parece incomodar o ritual da rapariga celebrado na torneira que não fecha. A velha mulher continua, também ela impassível, a esfregar os tachos, pratos e panelas com um pano imundo. A rapariga acaba de se lavar e começa a encher a bilha, concentrada, uma vez mais, nos seus gestos.
Eu distraio-me a olhar um búfalo que esfrega o seu enorme corpo numa trave de madeira para se coçar, soprando. O som da água que enche a bilha começa a ficar mais agudo e concluo que a rapariga está prestes a terminar a sua missão matinal. O búfalo afasta-se da trave de madeira para enfiar o focinho num monte de palha e olho novamente na direcção da fonte. A velha troca algumas palavras com a rapariga enquanto ela levanta com esforço o peso da água e coloca a bilha novamente à cintura. Suman e eu voltamos a existir novamente pois ela olha para nós, um de cada vez, e sorri antes de virar costas e seguir o seu caminho. Suman também me olha e sorrimos. Um sorriso malandro cheio de intenções. Eu volto a pegar num balde meio cheio e poiso-o debaixo da pequena cascata artificial.
Um grito abafa o som da água a cair. A rapariga aparece novamente correndo com a velocidade que o pesado objecto à cintura lhe permite. Grita novamente e fala depressa e alto, a sua cara bonita está alterada pelo medo. Suman puxa-me por um braço dizendo "Calado, come, come, bring the bucket". É a nossa vez de correr pelo estreito caminho entre bambus que leva a uma clareira na bela floresta à saída de Surket. Saltamos para o lado para não sermos atropelados por um búfalo que trota raivoso pelo caminho na direcção contrária à nossa. Não compreendo o que se passa, mas cresce em mim um sentido de urgência que não precisa de mais explicações.
Oiço gritos de crianças que vêem da clareira. Suman avança à minha frente gritando alto em nepalês. Sham vem ao nosso encontro arrastando um miúdo pela mão enquanto usa a outra para rodar um t-shirt à sua frente. O miúdo chora, mas não é o único na clareira. Olho para Sham e encolho os ombros "what?". Suman corre na direcção de uns gritos mais fortes. Corro também na mesma direcção enquanto oiço Sham berrar nas minhas costas uma palavra que eu, não sei porquê, adivinhava que ele ia dizer: "Bees!!!".
Outros miúdos fogem dando chapadas a si próprios, tropeçando, caindo. Mas os gritos de um miúdo vindo do meio das árvores um pouco acima, sobressaem no meio de todos os outros. O chamamento de quem sofre algo cruel. É para lá que Suman e eu corremos. Olho para trás e vejo Sham apanhar algo do chão, e nesse momento não percebo porque não corre ele também connosco. Suman começa a gesticular freneticamente e a correr aos "ss" como se estivesse bêbedo. Vejo finalmente uma criança muito pequena completamente enrolada em si própria que agora chora soluçando mais do que grita. Já não tem mais forças para gritar.
Junto aos meus ouvidos começo a ouvir um zumbido que se multiplica rapidamente. Suman segura o miúdo e levanta-o do chão, abanando as mãos. De uma só vez despejo o balde de água sobre ambos, sou picado por várias abelhas e compreendo porque Sham não tinha corrido até ali, porque sinto o cheiro de coisas a arder. Fumo, claro. Largo o balde vazio e ajudo Suman a transportar o miúdo no meio de uma chuva de abelhas enormes. Sham vem ao nosso encontro com uma tocha de palha fumegante e envolve-nos com o fumo. Um grupo de mulheres nepalesas que chegaram entretanto ateava mais umas quantas
fogueiras. Em pouco tempo a clareira estava mergulhada num nevoeiro aromático. Começámos a fazer um exame rápido à criança severamente picada pelas abelhas. Pelo meu lado, sentia uma orelha, uma mão e o pescoço a latejar com dores. Três, balanço final.
Do meio do grupo de mulheres, uma correu na nossa direcção. A bonita rapariga da torneira que não fecha. Tirou o miúdo das nossas mãos e abraçou-o sussurrando-lhe algo carinhoso ao ouvido. Eu viro-me para Suman e digo-lhe: "Well Suman, if she is your wife, then the kid must be your son...". Suman tenta sorrir, mas a sua cara começa a ficar tão inchada das picadas que mais parece fazer-me uma careta.
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