Monday, November 14, 2005

Vingança Turca


Ali tem por volta de 40 anos e um sorriso rápido e grande.
Simples, como tinha sido a sua vida de agricultor e condutor de «dolmuz» em Akköprü, uma aldeia Turca agora praticamente deserta que irá ficar submersa com a construção de uma barragem. Ali está diferente desde que trabalha para uma empresa de rafting e gere uma tea house na aldeia, o Ali's cafe.

Voltou as costas aos campos, aprendeu um Inglês rudimentar, usa permanentemente um canivete suíço à cintura e veste t-shirts de cores vivas com publicidade a empresas estrangeiras. Ali é casado e tem duas filhas, mas não consegue evitar a sua paixão pelas outras mulheres.

Todos os dias de manhã conduz os clientes de rafting na sua carrinha Peugeot J9 pelo labirinto de estradas de terra que rasgam as montanhas calcárias da região do rio Dalaman e que conhece como a palma da sua mão. Todos os dias de manhã a sua boa disposição é contagiante, põe música turca no leitor de cassetes, alta e distorcida.

Quem vai atrás não consegue ver a sua expressão de felicidade, apenas a adivinha pelos seus gestos. Larga o volante, abre os braços e estala os dedos abanando a cabeça acompanhando o ritmo das precursões. De vez em quando fuma um cigarro depois de estender o maço a todos os que estão perto de si, como se quisesse partilhar a sua alegria através do fumo. Numa das últimas manhãs de Maio, como sempre faz durante toda a época de rafting, deixa os seus passageiros junto ao rio a uma hora e meia de distância da sua tea house, e regressa sozinho pela estrada poeirenta.

Ninguém desconfiava, mas a sua viagem de regresso era sempre mais demorada do que a sua ida. Ali tinha um segredo. Um segredo que não partilhava com nenhum de nós.

Sensivelmente a meio do caminho da montanha há uma pequeníssima aldeia escondida no meio dos pinhais, com uma das casas mais isolada do que todas as outras. Branca e azul, de um só piso, com janelas e portas de madeira antiga. Uma casa modesta como todas casas desta região. Mas esta tinha algo de muito especial para Ali.


Era aqui que parava todos os dias para se encontrar com uma jovem mulher casada. O marido, muito mais velho, saía de casa bem cedo na motorizada para trabalhar na escuridão das minas de crómio ali perto. Ali tinha as coisas bem estudadas. No caminho de regresso verificava se a motorizada estava estacionada junto à mina. Além disso, por volta do meio dia a pequena aldeia estava deserta, com toda a gente a trabalhar no campo ou na mina. Nunca havia ninguém por perto, apenas a mulher sozinha em casa.

Uma prenda, uma rápida troca de palavras doces e sorrisos, uns minutos de paixão. Agora sabemos a razão de tanta alegria matinal. Porque os segredos, como as mentiras, não duram para sempre.

Nessa manhã, apesar do marido estar como sempre a sufocar lentamente num buraco profundo sem desconfiar de nada, o irmão da rapariga ouviu alguém comentar a presença da carrinha de Ali estacionada junto à casa isolada branca e azul. Sem mais demoras ou perguntas, entrou no seu Renault 12 e acelerou pelo caminho fora pintando o céu com poeira. Estacionou no meio do pinhal.

Meteu-se a pé por uma vereda no meio das árvores e chegou a tempo de ver ao longe a sua própria irmã despedindo-se do amante com um beijo apaixonado. Na Turquia, irmã é irmã, família é família e honra é honra. Irrompeu pela porta
da cozinha dentro direito ao armário onde sabia que o cunhado guardava uma caçadeira, verificou num segundo que estava carregada com munições, correu para a porta da frente da casa, afastou com um gesto brusco e um grunhido a rapariga do seu caminho, apontou para o meio do corpo de Ali e disparou um tiro certeiro.
Ali sentiu o impacto, a dor e caiu por terra. Na queda em espiral ainda teve tempo de ver os olhares dos dois irmãos. Nela viu medo e preocupação, nele ameaça e raiva. Desmaiou.

Acordou com um estranho ardor acima da coxa esquerda que rapidamente se transformou numa dor aguda. Não se lembrava exactamente porque estava deitado na terra junto à sua carrinha nem de onde vinha aquela estranha dor. Levou a mão à nádega e sentiu que ela se colava às calças de ganga. Levou a mão junto aos olhos e verificou que estava tingida de vermelho escuro. A memória do que acontecera voltou num instante. Tinha sido atingido por um tiro de caçadeira.

Ergueu-se ligeiramente para olhar a porta da casa mas não viu ninguém. No entanto ouvia outro som além dos pássaros, do sussurro do pequeno ribeiro e do vento no pinhal. Um gemido intermitente, profundo.

Temia que a rapariga também tivesse sido atingida, mas não precisou de muito tempo para ter consciência de que esse gemido vinha da sua própria garganta. Respirou de alívio. Se fosse apanhado pelo marido e não pelo irmão, ele e a rapariga estariam mortos nesse momento. Sorte também o irmão dela ser seu amigo de copos de raku em noites de festa. O tiro fora apenas um aviso. Um doloroso aviso.

Tentou levantar-se mas a dor fê-lo cair novamente por terra. Rolou o corpo evitando ao máximo tocar com a zona ferida no chão e rastejou até à carrinha, trepando pela roda e pela porta até conseguir pôr-se em pé. Estava com tonturas e náuseas. Procurou a chave nas calças com a mão suja de sangue e abriu a porta. Respirou fundo várias vezes concentrando-se em esquecer a dor.

Entrou e sentou apenas a nádega direita no banco deixando um rasto vermelho no tecido claro. Pôs o motor a trabalhar e arrancou lentamente em direcção à sua tea house em Akköprü pelo caminho sinuoso que conhecia tão bem.

A sua boca abriu-se para mostrar os dentes irregulares. Desta vez não para sorrir, mas para exibir um triste esgar de dor.