Friday, November 04, 2005

Pastoreando



Estou parado, descansando sobre as minhas pernas dobradas,
o olhar perdido no ondular dos pequenos montes que se perdem no vapor cinzento de uma tempestade que se aproxima.
A paisagem estende-se como um intrincado puzzle de linhas rectas e curvas, tons de castanho interrompidos pelos sorrisos verdes de alguns campos cultivados. O vale mais próximo do caminho parece funcionar como anfiteatro natural, deixando-me distinguir, com incrível nitidez, os sons das pequenas aldeias a meus pés. Vozes que falam, vozes que chamam, ruídos de animais, um martelar de aço, uma roda que chia.

Uma sinfonia de gente que trabalha.

Mais próxima e vinda de outra direcção, oiço outra melodia, nem alegre nem triste, tocada por uma flauta. Rodo a cabeça para descobrir um miúdo camuflado entre as plantas altas que ladeiam a terra do caminho. Ao seu lado surgem mais duas pequenas cabeças que me espreitam. Duas miúdas ainda mais novas que o pequeno pastor. Apercebo-me também do movimento entre as giestas de algumas cabras que pastam tranquilamente a alguns metros de mim. Ficamos por longos momentos sem desviar os olhares, embalados pela lenta e curiosa música que o pequeno toca alternadamente com a flauta e com os lábios num assobio tão perfeito como o som do instrumento.

Uma das cabras salta para o caminho. A música é substituída por uma voz mais grave do pequeno pastor que dá uma ordem qualquer ao animal desobediente. Os miúdos levantam-se por sua vez e seguem o caminho do animal extraviado. Elas estão vestidas nos tons de vermelho berrante que as mulheres desta região gostam de usar, o rapaz tem calças e camisola cor azul desmaiada. A cabra volta para junto das outras receando, talvez, uma reacção mais concreta do rapaz. As duas miúdas ficam paradas a olhar para mim.



Momentos depois a mais pequena vence a pouca distância que nos separa e estende-me uma flor sorrindo. Eu sorrio também, recebo a oferta e agradeço com um "danibad" desajeitado. Ela vira-me as costas e corre saltitando para junto dos outros e regressam para o seu poleiro no meio das giestas e das cabras. Seja o que for que levou a criança a ter este gesto deixa-me desconfortável, porque eu não tive qualquer impulso de oferecer nada a estes miúdos, mas apenas observá-los como se fizessem parte de uma pintura em movimento.

Ergo-me e sigo lentamente o caminho de terra que me levará a Nagarkot. Não tinha avançado muito quando ouvi novamente a melodia do pequeno pastor. Uma melodia nem alegre nem triste que ainda hoje consigo ouvir nitidamente cada vez que olho para a flor que a miúda me ofereceu.

Wednesday, November 02, 2005

Bus to Barabise


Depois de mais de uma hora em acesa discussão da qual,
confesso, não percebi praticamente nada, o revisor e o passageiro resolvem decidir as coisas de forma mais violenta. Nesta altura já metade do autocarro tinha tomado uma ou outra facção e davam a sua opinião alto e bom som.

Era altura do teatro. Daquele ritual em que ambos se olham e medem, agora em pé e próximos um do outro, mas em que nenhum decide começar mesmo a lutar. Vêem-me à memória imagens de documentários na televisão sobre a vida animal... A velhota ao meu lado olha para mim e o seu rosto deixa passar uma expressão que parece querer dizer Kegarné... «What to do?».



Alguém berra ao motorista e o autocarro pára. Os dois adversários requerem espaço. Mais espaço do que o estreito corredor do autocarro pode oferecer. Mas enquanto o som alto da discussão continua, vários passageiros levantam-se para tentar agarrar um dos inimigos. Mais berros, mais gritos, mais confusão.

Entretanto eu, pela parte que me toca, não estou muito interessado na disputa e abro a janela minúscula para fumar um cigarro. Entre passas, olho de vez em quando para dentro do recinto e actualizo-me em relação aos resultados. Empatados até agora. Ambos rosnam entre si por momentos e depois falam para os seus partidários para conseguir algum apoio.
Mais umas passas. Com a cabeça totalmente fora do autocarro, oiço o motor do Tata a arrancar. É estranho ouvir este som como se estivesse fora do autocarro e não como o costumo ouvir quando sou passageiro. Um som mais abafado, menos metálico.

Olhando novamente para dentro, parece-me que as coisas afinal não vão chegar ao contacto físico. O passageiro já está quase sentado e o revisor recuou um ou dois passos para uma distância menos agressiva. Mas a troca de palavras, essa, ainda não arrefeceu nem um grau. Embora agora me pareça cada vez mais suave como se fosse dissolvida lentamente na paisagem que muda e no som forte do motor.