Friday, October 28, 2005

Ganja


Nabin senta-se primeiro que eu na relva fresca e faz o gesto de acender o pequeno cigarro Kukuri cheio de erva dentro. Mas os movimentos param a meio e tomam um novo rumo, mais complexo, de uma espécie de oração, acompanhados de algumas palavras estranhas para mim.
- What are you doing man? - pergunto enquanto me sento ao seu lado.
- I'm praying to the good of marijuana, Shiva...

Enquanto ele por fim acende o charro os meus pensamentos
perdem-se por caminhos desconhecidos e ali, debaixo de um sol ainda forte, com uma vista não menos poderosa sobre os irreais 8.000 m do Manaslu, com o corpo bem assente no verde das margens do rio Marshyangdi, tenho uma súbita
e clara consciência de que Nabin - como a maior parte dos Nepaleses - tem uma ligação muito mais forte e primordial com as coisas que faz, com as palavras que diz, com a própria vida.

Nabin passa-me o cigarro, aspiro o fumo profundamente e aprisiono-o por momentos nos meus pulmões, para o libertar em direcção ao azul do céu. Olho para a agitação do acampamento a umas dezenas de metros de distância, e depois para a agitação ainda maior e mais distante das águas revoltas e brancas do rio. Para os lados das grandes montanhas o céu começa a pintar-se de negro com nuvens de tempestade. Dou mais uma passa e devolvo o charro a Nabin. O meu corpo começa a ficar mais desperto. Oiço com maior nitidez todos os sons que me rodeiam: o rio em fúria, pedaços de conversas em flamengo e nepalês, o fumo a entrar e a sair da boca de Nabin. Sinto o vento a crescer e o calor do sol na minha pele, apercebo-me do rápido avançar das nuvens ameaçadoras que descem para o vale.

Entre mim e Nabin apenas silêncio. Mas sinto que partilhamos algo mais do que apenas um pedaço de erva a arder. Com o fumo, entra no meu corpo um respeito pela simplicidade das coisas, um conhecimento que não pode ser ensinado nem aprendido, porque não pode ser explicado, apenas sentido.



Ram, o chefe dos nossos carregadores Gurung, avança na nossa direcção vindo do acampamento. Tenho uma admiração enorme por este homem magro, baixo e escuro. Uma admiração que lhe consegui transmitir por gestos depois de o ver carregar durante mais de seis horas um fardo com oitenta quilos suspenso da testa apenas por uma estreita tira de tecido. Seis horas que suportou com a expressão neutra de quem pensa que é um trabalho normal que tem que ser feito. Apesar de estar a carregar bem mais do que o seu próprio peso, e de sermos quatro pessoas a ajudá-lo a levantar do chão o peso desmesurado do fardo.

Ram está agora perto de nós e sorri com vontade apontando com um dedo primeiro o nariz e depois o fumo espesso e aromático que se liberta do nosso charro. Com o mesmo dedo aponta para si próprio e diz meio afirmando, meio em tom de pergunta: ganja!?

Partilhar a erva com Ram é para mim ao mesmo tempo uma profunda honra e um acto cerimonial. Observo com atenção como ele coloca as mãos em forma de concha, aspirando o fumo na zona dos polegares com o cigarro entalado na outra extremidade. A sua expressão não é muito diferente daquela que tinha quando transportava a carga pela montanha acima: tranquila e natural. Depois de acabar com o charro, ficamos os três no mesmo silêncio, olhando-nos mutuamente. Tenho outra vez a sensação de que estamos a comunicar sem palavras, numa conversa telepática sem idioma, sem tema, sem propósito.

Sinto todos os músculos do meu corpo relaxarem, e a minha mente encher-se de vazio. De um agradável vazio. Não sei quanto tempo ficamos assim sentados na relva verde e fresca das margens do Marshyangdi.
Despertamos com o som inesperado e forte de um trovão, acompanhado quase em simultâneo por grossos e pesados pingos de chuva. Olho com surpresa para o céu e vejo que a tempestade sorrateiramente se tinha instalado mesmo por
cima de nós. Levantamo-nos para regressar ao acampamento. Ram interrompe-me colocando a sua mão direita no meu ombro. Olha para mim directamente nos olhos, esboça um sorriso e abana a cabeça uma vez afirmativamente.

Sei que me está a agradecer, mas não sei exactamente se me agradece pela ganja partilhada, pelo momento mágico e mudo que experimentámos ou pelo facto de eu lhe ter demonstrado dias antes a minha admiração. Apenas sei que foi provavelmente o agradecimento mais simples, mais espontâneo e sincero que alguma vez recebi. Quando ele retira a mão, dou-lhe uma suave palmada nas costas e sorrio.

Ram, Nabin e eu corremos para o acampamento rindo alto, encharcados até aos ossos pela chuva poderosa que os Deuses dos Himalaias resolveram despejar sobre nós.

Wednesday, October 26, 2005

Abelhas Assassinas



Uma torneira que não fecha. Uma torneira que uso para encher uns baldes com a água que corre sem pressas, aparentemente limpa. Uma velha mulher ronda-a lavando a loiça do dia anterior com a mesma tranquilidade.

Suman diz qualquer coisa em nepalês a uma rapariga que se aproxima do pátio que serve de fonte local. Ambos sorriem. A rapariga olha para mim sem disfarçar a curiosidade, mas desvia o olhar assim que eu confesso notar a sua inspecção.
Traz, apoiada na cintura, uma bilha metálica que reflecte com intensidade o sol quente da manhã e o laranja do seu vestido.

Recuo um pouco deixando livre a torneira. A rapariga tira as sandálias e começa a lavar os pés no fio de água, concentrada naqueles gestos simples, sem reparar mais em nós apesar de estar a menos de um braço de distância. Admiro a sua beleza mas não consigo atribuir-lhe uma idade com exactidão. Brinco com Suman perguntando-lhe em inglês se ela é a sua namorada. Ele nega, dizendo que é antes uma das suas muitas mulheres. Entretanto a rapariga continua a usar o fio de água para refrescar a sua pele castanha e macia: as mãos, os braços, os ombros, o pescoço. Todos os gestos contêm uma enorme sensualidade nada artificial e por isso tão perturbadora.

Suman está agora verdadeiramente hipnotizado e tropeça num dos baldes vazios que estão aos nossos pés. Mas nem este ruído súbito parece incomodar o ritual da rapariga celebrado na torneira que não fecha. A velha mulher continua, também ela impassível, a esfregar os tachos, pratos e panelas com um pano imundo. A rapariga acaba de se lavar e começa a encher a bilha, concentrada, uma vez mais, nos seus gestos.

Eu distraio-me a olhar um búfalo que esfrega o seu enorme corpo numa trave de madeira para se coçar, soprando. O som da água que enche a bilha começa a ficar mais agudo e concluo que a rapariga está prestes a terminar a sua missão matinal. O búfalo afasta-se da trave de madeira para enfiar o focinho num monte de palha e olho novamente na direcção da fonte. A velha troca algumas palavras com a rapariga enquanto ela levanta com esforço o peso da água e coloca a bilha novamente à cintura. Suman e eu voltamos a existir novamente pois ela olha para nós, um de cada vez, e sorri antes de virar costas e seguir o seu caminho. Suman também me olha e sorrimos. Um sorriso malandro cheio de intenções. Eu volto a pegar num balde meio cheio e poiso-o debaixo da pequena cascata artificial.

Um grito abafa o som da água a cair. A rapariga aparece novamente correndo com a velocidade que o pesado objecto à cintura lhe permite. Grita novamente e fala depressa e alto, a sua cara bonita está alterada pelo medo. Suman puxa-me por um braço dizendo "Calado, come, come, bring the bucket". É a nossa vez de correr pelo estreito caminho entre bambus que leva a uma clareira na bela floresta à saída de Surket. Saltamos para o lado para não sermos atropelados por um búfalo que trota raivoso pelo caminho na direcção contrária à nossa. Não compreendo o que se passa, mas cresce em mim um sentido de urgência que não precisa de mais explicações.

Oiço gritos de crianças que vêem da clareira. Suman avança à minha frente gritando alto em nepalês. Sham vem ao nosso encontro arrastando um miúdo pela mão enquanto usa a outra para rodar um t-shirt à sua frente. O miúdo chora, mas não é o único na clareira. Olho para Sham e encolho os ombros "what?". Suman corre na direcção de uns gritos mais fortes. Corro também na mesma direcção enquanto oiço Sham berrar nas minhas costas uma palavra que eu, não sei porquê, adivinhava que ele ia dizer: "Bees!!!".

Outros miúdos fogem dando chapadas a si próprios, tropeçando, caindo. Mas os gritos de um miúdo vindo do meio das árvores um pouco acima, sobressaem no meio de todos os outros. O chamamento de quem sofre algo cruel. É para lá que Suman e eu corremos. Olho para trás e vejo Sham apanhar algo do chão, e nesse momento não percebo porque não corre ele também connosco. Suman começa a gesticular freneticamente e a correr aos "ss" como se estivesse bêbedo. Vejo finalmente uma criança muito pequena completamente enrolada em si própria que agora chora soluçando mais do que grita. Já não tem mais forças para gritar.

Junto aos meus ouvidos começo a ouvir um zumbido que se multiplica rapidamente. Suman segura o miúdo e levanta-o do chão, abanando as mãos. De uma só vez despejo o balde de água sobre ambos, sou picado por várias abelhas e compreendo porque Sham não tinha corrido até ali, porque sinto o cheiro de coisas a arder. Fumo, claro. Largo o balde vazio e ajudo Suman a transportar o miúdo no meio de uma chuva de abelhas enormes. Sham vem ao nosso encontro com uma tocha de palha fumegante e envolve-nos com o fumo. Um grupo de mulheres nepalesas que chegaram entretanto ateava mais umas quantas
fogueiras. Em pouco tempo a clareira estava mergulhada num nevoeiro aromático. Começámos a fazer um exame rápido à criança severamente picada pelas abelhas. Pelo meu lado, sentia uma orelha, uma mão e o pescoço a latejar com dores. Três, balanço final.

Do meio do grupo de mulheres, uma correu na nossa direcção. A bonita rapariga da torneira que não fecha. Tirou o miúdo das nossas mãos e abraçou-o sussurrando-lhe algo carinhoso ao ouvido. Eu viro-me para Suman e digo-lhe: "Well Suman, if she is your wife, then the kid must be your son...". Suman tenta sorrir, mas a sua cara começa a ficar tão inchada das picadas que mais parece fazer-me uma careta.

Tuesday, October 25, 2005

A caminho do Tibete



Wade e Peter juntam-se no pequeno palco que se ergue ligeiramente em relação ao piso em pedra da cabana enorme que serve de jantar e começam a ensaiar os primeiros acordes de viola... «something is happening here, what it is ain't exactly clear».

Acho que nunca chegarei a ter a certeza se as músicas tocadas por eles são realmente boas ou se soam bem por causa do cenário que me envolve. O que interessa realmente é que o resultado é perfeito, e deixo-me embalar por um torpor a que a agitação do dia em muito contribui com certeza.

Estamos num pequeno desvio ao Km 95 da «Arniko highway», a estrada que une o Nepal ao Tibete (ou à China, se preferirem), apenas 16 km a sul da fronteira. Três horas e meia de autocarro separam-nos de Kathmandu, pela estrada que serpenteia entre campos cultivados, pequenas aldeias, vales de rios e encostas de montanhas debruçadas sobre profundos precipícios.



O sitio é paradisíaco, estamos rodeados de bananeiras, flores, encostas de onde se despenham cascatas e embalados pelo sussurro de um rio que corre à nossa frente. Selvagem, branco e verde esmeralda. Os terraços, construídos para enganar a inclinação do terreno, estão cobertos de relva macia e fresca. Distribuídas pelos terraços há diversas tendas coloniais protegidas por telhados de palha, miniaturas da cabana mãe, que serve ao mesmo tempo de sala de convívio, restaurante, bar e de palco. Estamos em «Borderlands», uma estância que parece uma ilha no meio da típica confusão do Nepal, ou não fosse gerida por um «western».

Wade é um jovem empresário Canadiano que escolheu o Nepal para investir e viver. Tendo como base o vale do Bhote Kosi - o rio do Tibete - podemos escolher entre diversas maneiras de entrar em contacto mais directo com esta natureza deslumbrante: percorrer a pé trilhos que se estendem ao interior do Parque Nacional de Langtang e que se afastam dos roteiros habituais, descer em canyoning uma das cascatas que se desenham nas montanhas que nos rodeiam, fazer Bungee Jump de uma ponte suspensa a 160 m de altura sobre o rio ou alugar uma BTT e seguir a estrada de terra até à fronteira com o Tibete, para vislumbrar Khasa do outro lado e ficarmos curiosos perante a radical diferença entre os dois países vizinhos.

Mas a razão principal que nos trouxe de visita a este vale foi uma aventura diferente: o Bhote Kosi, uma das descidas em kayak mais alucinantes e divertidas que se podem fazer em todo o Nepal.

Tínhamo-nos encontrado com o resto do grupo cerca das 6 da manhã, hora a que Kathmandu começa a acordar. Depois de um chá matinal, entramos num dos inconfundíveis «Tata» - autocarros nada confortáveis «made in India» - e deixamos para trás a poluição e a permanente agitação de Kathmandu. Percorremos durante alguns quilómetros uma parte do vale para entrar pelas montanhas dentro, deixando-nos apreciar magníficas paisagens de um verde intenso, terrenos cultivados à custa de muitos anos de trabalho - mesmo de muitas gerações - dispostos em terraços com um sistema de irrigação impressionante nestas encostas tão verticais. Um pouco mais à frente, teremos uma vista geral sobre os Himalaias,

Depois de atravessar uma ponte sobre o majestoso Sun Koshi vemos o rio que é a razão desta viagem. Apesar de parecer pequeno e levar pouca água, o Bhote Kosi é na verdade uma torrente furiosa que drena o início do planalto Tibetano e que entrega depois as suas águas ao gigante Sun Koshi.

A experiência diz-me que isso não passa de uma aparência, pois no Nepal, os rios (e quase tudo) são sempre maiores e mais potentes do que parecem à primeira vista...